Em 1º de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assumiu com a promessa de “desmatamento zero na Amazônia” até 2030. Quase seis meses após firmar o compromisso público, ele relançou o já conhecido Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), responsável por derrubar as taxas da destruição florestal entre os anos 2000 e 2010, mas muito longe de interromper o ciclo destrutivo. Por que será diferente desta vez?
A reportagem é de Wérica Lima, publicada por Amazônia Real, 03-07-2023.
A Amazônia Real fez um estudo do documento e ouviu ambientalistas para darem seus pareceres sobre o PPCDAm. Ele foi lançado em 5 de junho no que o governo chama de “5ª fase” do combate ao desmatamento amazônico. Conforme o relatório oficial, o plano chegará a esse objetivo fortalecendo a implementação de legislação florestal, a recuperação e o aumento de vegetação nativa por meio de incentivos econômicos para conservação e manejo sustentável.
“O lançamento do PPCdam em sua nova fase é uma retomada necessária de políticas e ações necessárias para frear o desmatamento e a degradação no Brasil e em especial na Amazônia, e ainda dar suporte à construção de uma agenda positiva voltada ao engajamento da sociedade nesta luta da humanidade contra a destruição da natureza”, resume o ambientalista Carlos Durigan.
Em 2004, quando foi implementada a fase 1 do PPCDam, a taxa de desmatamento era de 27.772 quilômetros quadrados – é como se toda a mata do município de Presidente Figueiredo (AM) viesse abaixo num único ano. Oito anos depois, já na 3ª fase do plano, o desmatamento tinha despencado para 4.571 km² – três vezes o tamanho da capital paulista, portanto ainda longe de zerar a taxa.
Uma inovação importante do novo PPCDAm é a ênfase na integração das ações de inteligência e responsabilização pelo desmatamento ilegal, sublinha o cientista Paulo Artaxo. Geralmente os danos ambientais na Amazônia são acompanhados de ilícitos de outras naturezas, que agora vão estar incluídos nas ações integradoras como o garimpo ilegal e usurpação de terras públicas.
“Mesmo que o Brasil pare e coloque o desmatamento a zero em 2030, a degradação florestal é uma questão que nunca tinha sido efetivamente abordada em nenhuma política pública e que esse novo PPCdam leva em conta, o que é muito bom”, explica. Pelo novo plano, as atividades de fiscalização fiscal, financeira, mineral, fundiária e de sanidade animal passam a ser integradas para ampliar as sanções aos desmatadores ilegais.
Para que os objetivos sejam cumpridos, Artaxo lembra que vai ser necessária a participação não só do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério dos Povos Indígenas, mas de outros como o da Justiça. “É uma questão muito mais complexa e que requer um trabalho conjunto de vários ministérios, como que está sendo proposto agora”, diz.
O plano de combate ao desmatamento também é considerado o principal instrumento para a implementação da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), estabelecido no Acordo de Paris em 2015, que prevê o compromisso brasileiro em reduzir em até 38% a emissão de gases efeito estufa até 2030.
“O Brasil hoje é muito diferente do de sete, oito anos atrás. Agora a sociedade tem que fazer pressão,o Judiciário tem que fazer pressão, o agronegócio tem que implementar políticas públicas que façam o Brasil cumprir as suas metas do Acordo de Paris”, ressalta o pesquisador Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo e membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC).
“Se vai ter resultados ou não isto vai depender do Congresso Nacional, que já deu sinais muito claros de que vai continuar a destruição dos ecossistemas brasileiros, inclusive da Amazônia. Vamos ver até que ponto a sociedade como um todo reage a isto”, explica o cientista, exemplificando com algumas discussões em curso em Brasília, como o Projeto de Lei (PL) 490, que estabelece o marco temporal para demarcação de terras indígenas, cuja questão também está em debate no Supremo Tribunal Federal. “Mais e mais o STF está tendo protagonismo para coibir medidas ilegais como na questão do marco temporal.”
Palestra de Carlos Nobre no Junho verde no Ministério do Meio Ambiente, em Brasília (Foto: MMA)
Entre as novidades do PPCDAm, estão o foco em inteligência para auxiliar no rastreio e na repressão remota de crimes ambientais e suas cadeias produtivas, investimento em bioeconomia e ordenamento territorial de florestas públicas não destinadas. A 5ª Fase do PPCDAm, desta vez também ganhará um ano a mais para ser executado (2023 a 2027), totalizando cinco anos com o objetivo de sincronizar suas ações com o Plano Plurianual (PPA).
Uma das maiores expectativas é com relação ao cruzamento de informações que deve acontecer nesta 5º fase. O Núcleo de Articulação Federativa servirá como um banco de dados para compartilhamento de informações, identificação de dificuldades e possíveis estratégias em parcerias entre a União e outras unidades federativas (Estados e municípios).
“Um diferencial importante das fases anteriores é a questão da transversalidade das abordagens de cunho socioambiental que esperamos atinjam todos os setores da gestão pública, assim como todos os setores da sociedade. Este caráter articulado sendo exitoso, certamente levará à construção de um cenário mais positivo no enfrentamento da crise ambiental e social em que vivemos e ainda ajudará na construção de sustentabilidade real também no combate à crise econômica nacional”, diz Carlos Durigan, diretor da WCS Brasil.
As ações do PPCDAm vão girar em torno de quatro eixos com 12 objetivos específicos, sendo eles: Atividades produtivas sustentáveis; Monitoramento e controle ambiental; Ordenamento fundiário e territorial e Instrumentos normativos e econômicos.
Dentre os objetivos estabelecidos, o PPCdam prevê o estímulo de atividades sustentáveis, a responsabilização por crimes ambientais, aprimoramento do monitoramento, prevenção e combate a incêndios florestais, avanço na regularização ambiental com melhoria do Sistema Nacional do Cadastro Ambiental Rural (CAR), fortalecimento da articulação com estados da Amazônia legal, integração de dados de autorizações autuações e embargos, garantia da destinação e proteção de terras públicas não destinadas, melhoria da gestão de áreas protegidas e alinhamento com o planejamento dos grandes empreendimentos e projetos de infraestrutura com as metas nacionais de redução do desmatamento.
Agentes do GEF do IBAMA com apoio da PRF deflagram operação contra o garimpo na região de Mucujaí, na TI Yanomami (Foto: Bruno Kelly | MMA)
O PPCdam nasceu dentro do primeiro mandato do governo Lula para reduzir o desmatamento. A volta efetiva do PPCdam é animadora, mas não convenceu os especialistas de que vai ser como nos mandatos anteriores. Após a ascensão do governo de Jair Bolsonaro (PL), que apoiou por quatro anos desmatamento, garimpo, grilagem, o que na prática estimulou a ilegalidade pela Amazônia, os indicativos apontam que vai ser mais difícil combater o crime organizado que se incrustou na região. Mesmo que Bolsonaro tenha se tornado inelegível na sexta-feira (30), afastando um retorno dele à Presidência nos próximos oito anos, a lógica de explorar predatoriamente a floresta permanece, e a aprovação de legislações ambientais em desacordo com o PPCDAm é um grande desafio.
“A implementação plena das ações e políticas vislumbradas neste novo e revigorado PPCDAM encontrará fortes desafios, afinal nos últimos anos vimos se instalar na Amazônia um cenário onde floresce o crime por um lado e onde a agenda de exploração de recursos naturais para o mercado de commodities global não sofreu nenhum tipo de regulação, tampouco possibilitou maior controle social e repartição de seus benefícios”, explica o ambientalista Durigan.
Atualmente o Brasil é o 5º país que mais emite gases efeito estufa no planeta, mesmo com uma das maiores biodiversidades do mundo. Além dos próprios crimes cometidos à luz do dia na Amazônia, os políticos eleitos pelos Estados da região causam grande preocupação, pois, no poder, eles mantêm ativa a lógica de destruição.
Em 2022, o desmatamento da Amazônia foi de 10.573 km², o equivalente a quase 3 mil campos de futebol, apontou o Imazon, sendo a pior taxa em 15 anos. E se espraiou, atingindo diferentes categorias fundiárias. Metade das áreas desmatadas registrada pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) encontra-se em imóveis rurais inscritos no CAR, sobrepondo a áreas privadas ou sem informação fundiária (18%), a terras públicas não destinadas (15%), assentamentos (10%) e UCs (6%).
Fora do CAR, o desmatamento está presente em assentamentos (22%), em terras públicas não destinadas (14%), em áreas privadas ou sem informação fundiária (7%) e em unidades de conservação (6%). Ao todo, 64% e 11% do desmatamento ocorreram em áreas federais e estaduais, incluindo áreas destinadas como Terras Indígenas e Unidades de Conservação e não destinadas.
“O uso destes territórios (as terras públicas não destinadas) deveria estar fortemente controlado pelos interesses da sociedade e não serem destinados a patrimônios privados. O ideal é que as tenhamos conservadas e/ou bem manejadas no sentido de garantir que sigam seu papel de provedoras de serviços ecossistêmicos essenciais”, ressalta Durigan.
Encontro de Mulheres Defensoras do Clima, do Alto Acre (Foto: Hellen Lirtês | IPAM)
Durante a elaboração, o governo Lula contou com a participação de diferentes organizações governamentais e não governamentais, consultando especialistas e pesquisadores de diferentes áreas para contribuir nas estratégias e definição dos objetivos. Uma das entidades foi o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
A geógrafa Jarlene Gomes trabalhou na elaboração das recomendações para o PPCdam como coordenadora regional do Ipam no Acre. Ela destaca a importância das altas ou baixas taxas de desmatamento desta vez estarem relacionadas com o governo que presidia o Brasil e a política de Estado estabelecida em cada época.
“Considerando que o desmatamento da Amazônia tem sido um produto histórico de decisões políticas e forças de mercado que ajudaram a estabelecer uma paisagem florestal fragmentada como a conhecemos hoje, entender o papel da política no controle das taxas mais baixas e altas de desmatamento é avaliar as principais mudanças na política relacionada ao desmatamento nos últimos anos”, explica a pesquisadora Jarlene, que coordenou a elaboração do Plano Municipal de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima da capital Rio Branco (AC).
Para Jarlene Gomes, outro ponto de atenção da 5ª fase do PPCDAm é entender que para as políticas públicas relacionadas ao desmatamento terem eficácia será necessário inovar. “Destaco as abordagens políticas integradas para desmatamento, aplicação estratégica e melhoria no monitoramento, zoneamento do uso da terra e regularização ambiental e restrições econômicas”, acrescenta.
O professor da USP e membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) Paulo Artaxo (Foto: Marcos Oliveira | Agência Senado)
O PPCDAm tem objetivos específicos para o mundo dos incentivos econômicos (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal, ou simplesmente REDD+) e do mercado de carbono, um assunto que se tornou moeda corrente nos debates entre países e grandes corporações. O processo de benefícios e como deve ser feito não é especificado com clareza nesta 5ª fase do plano. Foram incluídos apenas os instrumentos a serem utilizados para benefício dos amazônidas como crédito rural e instituição da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA).
Para o professor e cientista Paulo Artaxo, esses incentivos econômicos ainda são uma utopia, já que não possuem resultados reais. “Até o momento, apesar do mercado de carbono ser um palavreado que está circulando há mais de 10 anos, ele não teve absolutamente efeito em nenhum ponto de vista”, alerta o cientista.
“Se ele pode ser reforçado e funcionar no futuro, é difícil, mas a realidade atual mostra que o mercado de carbono é um instrumento que não atinge os seus objetivos, nem de reduzir as emissões, nem de incentivar mecanismos para restauração florestal seja na Amazônia, seja na mata Atlântica seja em qualquer outro lugar”, acrescenta.
A falta de esclarecimento sobre os incentivos deixa dúvidas quanto a execução do plano nesse âmbito, pois muitos políticos como o governador do Amazonas Wilson Lima (União Brasil), o governador do Pará Helder Barbalho (MDB) e o governador de Roraima Antonio Denarium (PP) têm se apropriado desse discurso visando lucro, ao mesmo passo que incentivam atividades econômicas destrutivas contra a Amazônia.
O relatório do PPCdam faz um comentário genérico a respeito dos incentivos: “O avanço na regulamentação do mercado brasileiro de carbono poderá gerar oportunidades para o País, estimulando setores econômicos e fortalecendo os compromissos da sociedade em torno da proteção ambiental e da mitigação à mudança do clima”.
“Os mecanismos que a gente chama de REDD+, mecanismos de redução de degradação florestal e desmatamento, poderiam ser efetivos, mas certamente um mecanismo muito diferente do que temos hoje, que joga um papel absolutamente desprezível na questão da precificação do carbono emitido, na estratégia de redução de emissões”, diz Artaxo.
Para o pesquisador da USP, o mercado de carbono precisaria ser totalmente reformulado, primeiro com um aumento significativo do preço da tonelada de carbono para fazer valer a pena os investimentos e também com um envolvimento de ministérios, como os da Fazenda e da Agricultura.
Durigan, que acompanha há anos os debates sobre mercado de carbono, afirma que os incentivos (REDD+) deveriam ser de grande relevância para apoiar a mudança do cenário destrutivo, mas que não se vislumbra isso. “Ainda faltam processos que aterrizem na realidade da vida comunitária, da vida no campo, nos rincões da Amazônia e permitam mecanismos que tragam benefícios diretos aos povos amazônidas e possibilitem a valorização da floresta em pé, a sua conservação de fato”, diz.
Fazenda de gado ao longo da BR 319 no município de Humaitá, sul do Amazonas (Foto: Marcos Oliveira | Agência Senado)
O que o presidente Lula promete junto aos Ministérios é retomar uma realidade que pode não ser mais vista tão cedo na Amazônia. O PPCdam teve sua fase de eficácia em especial no governo de Dilma Rousseff (PT), chegando a uma redução do desmatamento de até 83%.
Depois do impeachment, quando Michel Temer (MDB) assume a Presidência, inicia-se o desmonte do combate aos crimes ambientais. Na 4ª fase do plano, entre 2016 e 2020, já sob Temer, mas especialmente no governo Bolsonaro, o desmatamento voltou a patamares pré-PPCDAm, crescendo em 73%. Ao contrário das primeiras fases que focou na criação de áreas de conservação e preservação, a 4ª fase reduziu essas áreas e muitas tiveram o nível de proteção rebaixado.
E os desmontes ambientais durante o período foram orquestrados, chegando a haver mudanças de legislações. Entre essas guinadas estão a Lei 13.465, de 11 de julho de 2017, onde todas as invasões de terras públicas que ocorreram ilegalmente entre 2004 e 2011 passaram a ter direito à titulação – beneficiando o invasor. Depois, com a Medida Provisória 910, de 10 de dezembro de 2019, já no governo Bolsonaro, foi feita uma tentativa de fornecer uma nova anistia para as invasões até 2018.
Já o Decreto 10.142, de 28 de novembro de 2019 descontinuou o PPCDAm e criou como substituto do Plano a Comissão Executiva para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa. Em 2020, o Decreto 10.239, de 11 de fevereiro de 2020, também transferiu o papel articulador interministerial da política de controle do desmatamento para o Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido pela Vice-Presidência da República, sob o general Hamilton Mourão.
“Com essas mudanças frequentes na legislação, criou-se a expectativa de que investimentos na usurpação e no desmatamento de terras públicas terão retorno futuro com a legalização da posse por meio de um título”, diz o próprio documento da 5º fase do PPCdam.
Na fase de ouro do Plano, em 2010, o Ibama e o ICMBio contavam com 4.420 e 2.832 servidores efetivos. Só de fiscais, o Ibama somava 1.311. Com o passar dos anos, o número foi reduzindo até chegar a uma redução de 25% em 2016. Nos anos seguintes, o número piorou e o Ibama chegou a ter apenas 2.675 servidores efetivos em 2020 e 621 fiscais.
O atual PPCdam garante que uma das suas ações mais importantes vai ser a realização de concursos públicos, fornecimento de cursos e eventos para capacitação dos servidores e estruturação de bases físicas estratégicas interagências (participação conjunta de órgãos).
Área de desmatamento no município de Careiro da Várzea (Foto: Marcos Oliveira | Agência Senado)
“O PPCdam não está sendo desenhado para ser um plano deste governo, é um programa de Estado, o que quer dizer que o Estado brasileiro tem a obrigação de zerar o desmatamento da Amazônia até 2030”, arremata Paulo Artaxo.
O pesquisador questiona como, de fato, os representantes da população amazônica enxergam e como desejam o desenvolvimento sustentável a ser implementado. Para ele, essa é uma das grandes perguntas para chegar até o ponto-chave de promover políticas públicas eficazes aos amazônidas.
“É fundamental também encontrar um modelo de desenvolvimento para a região amazônica que seja minimamente sustentável, isso é outro grande desafio: reduzir o desmatamento a zero pode nem ser tão difícil, mas substituir o atual modelo predatório de exploração dos recursos naturais da Amazônia por um que seja sustentável e traga benefícios claros à população, esta é uma das grandes questões e isso tem que partir da região Amazônica”, acrescenta.
Coluna de fogo avança sobre floresta degradada em área de floresta pública não destinada em Porto Velho, Rondônia (Foto: Christian Braga | Greenpeace)